Inspiração, ideia de visionário e a grande decepção
"‘Padre Ernesto, fique conosco, more conosco'. Esses apelos que eu ouvia durante as visitas aos barracos de Corumbá, e que pareciam orações, inspiraram-me a pronunciar: ‘Vou ficar com vocês'. Naquele instante, surgiu em minha mente uma obra enorme, uma escola para 2 mil crianças. Então chamei um arquiteto, que havia sido meu aluno, dei papel a ele comecei a ditar o que estava imaginando", lembra padre Ernesto Sassida.
A Escola Profissional Alexandre de Castro já funcionava a vapor máximo em três períodos quando o padre se reuniu com o arquiteto José Sebastião Cândia e descreveu as características e dimensões da obra que pretendia concretizar: "Um prédio frontal de 80 metros para recepção, administração e salas de reunião; do lado esquerdo, a capela e, do direito, um teatro para umas 500 pessoas. Então ele disse: ‘O senhor deve está brincando'. Depois, um pátio com quadras de esporte e, logo adiante, um prédio para 2 mil alunos. Ele parou, olhou-me e disse: ‘ Não fale mais, tenha dó…' Ao fundo à direita, uma grande quadra coberta e, à esquerda, as oficinas".
O padre conta que, inda naquele primeiro ano da escola, com grande esforço para angariar todos os recursos e donativos possíveis, enviou para uma empresa em São Paulo-SP uma quantia entre 30 e 40 mil dólares angariados em viagens ao exterior, referente ao pagamento adiantado de toda a ferragem para a primeira etapa da obra. "Mas o tempo passava e esse ferro não vinha. Então decidi ir àquela cidade para ver o que tinha ocorrido. Lá chegando, um gerente da empresa me disse: ‘Reverendo, não se aflija, mas esse dinheiro não existe mais. Está no Banco do Brasil, pois a empresa foi à falência'. Naquele momento, eu não tinha dinheiro nem mesmo para voltar, e tive que telefonar para que me mandassem dinheiro".
A notícia era desastrosa, mas não podia abalar o propósito e a determinação de levar a obra adiante. Mesmo após a perda e com a pedra fundamental já lançada, a terra foi finalmente rasgada às 15 horas do dia 9 de janeiro de 1962 com o início da construção dos alicerces do primeiro pavilhão da escola, nos terrenos agrupados da Rua Dom Aquino Corrêa, entre as ruas José Fragelli e Cyríaco de Toledo.
Embora simples e marcada mais por fé e esperança, a cerimônia contou com diversas autoridades, como o secretário estadual de Educação e Cultura, Hermes Rodrigues de Alcântara, e o deputado estadual Fauze Scaff Gattass. Juntamente com padre Ernesto, encontravam-se José Ferreira de Freitas, Claudio Gabriel dos Santos, Paulino Lopes da Costa, Francisco Patricio de Barros, Walmir Coelho, Alexandrindo dos Santos Mauro e o padre Miguel Alagna, que benzeu a pedra.
A voz das professoras e o barulho dos martelos
"Depois de iniciada a obra, as contribuições em material, transporte e mão-de-obra de pedreiros, carpinteiros, encanadores, serventes e eletricistas foram tão generosas que, em um ano e oito meses, já estava quase pronto o primeiro pavilhão. No decorrer das obras deste e dos pavilhões subsequentes, foi de muito valia a atuação capaz e desprendida dos mestres de obra Eduardo Celestino e José de Faria (Zé Paraguai)", relata o escritor José Ferreira de Freitas, presidente da diretoria da escola.
Na abrangente obra O Profeta do Pantanal, o professor Renato Báez relata que, em ambiente festivo, mas de extrema simplicidade, alunos, mestres, diretores, benfeitores e autoridades municipais reuniram no ‘barraco' de dona Catarina, às 9 horas do dia 1º de abril de 1962, para celebrar o primeiro aniversário de fundação da Escola Alexandre de Castro. "Após a Santa Missa, a vela acesa pelo primeiro aluno matriculado, Luiz Carlos da Mata, foi apagada pela aluna que mais havia se destacado – Arine Maria Viégas de Pinho", acrescenta.
Embora pronta para a inauguração em menos de dois anos, a obra do primeiro pavilhão chegou ao fim após árduo trabalho e esforços quase sobre-humanos daqueles à sua frente, somados à enorme necessidade de apoio para que o trabalho no ‘barraco' não fosse interrompido. Desde o início, precisou da ajuda de muitas pessoas. "Com grande frequência, eu e minha esposa fazíamos almoço beneficente com o propósito de arrecadar dinheiro para a obra. Dessa forma, muita gente contribuiu para a concretização do sonho do padre Ernesto", conta João Gonçalves Miguéis, primeiro presidente da Legião Mato-grossense dos Amigos da Criança (Lemac).
Renato Báez conta que, ainda em meados de 1963, a demanda por vagas era tamanha que a solução encontrada pela direção foi transferir as aulas para a nova sede, ainda em construção. "O prédio estava sem reboque, sem portas e sem ladrilho. Isso foi se fazendo progressivamente, misturando-se crianças com operários, a voz das professoras com o barulho dos martelos e do material de construção. Na maior parte, as aulas eram dadas na varanda, e as crianças ficavam expostas ao sol, chuva e vento, contra os quais eram defendidas por lonas dependuradas entre as colunas", descreve.
E ainda com os contornos desse cenário, o dia 15 de dezembro de 1963 foi dominado pela cerimônia e festa de inauguração do primeiro pavilhão da futura Cidade Dom Bosco, com Missa Campal, bênção do prédio, discursos de autoridades e churrasco. Na ocasião, o prefeito de Corumbá, Edimir Moreira Rodrigues, expressou o reconhecimento e gratidão do povo corumbaense aos personagens que haviam tornado aquele momento possível. Em seguida, Alceste de Castro, filho do professor Alexandre de Castro, destacou, em nome da família, o trabalho do pai pela educação na cidade.
Posto médico, cine-teatro e a nova identidade
Enquanto padre Ernesto e seus inúmeros colaboradores preparavam a inauguração do novo prédio, com o firme propósito de atuar em todas as frentes, ele viabilizou um convênio com o Município que resultou, em 15 de outubro de 1963, a inauguração do Posto Médico Municipal, que funcionaria como anexo à Escola Alexandre de Castro. Apenas um mês depois, deu início à construção do Cine-Teatro, exatamente como planejara e dissera ao arquiteto José Sebastião Cândia dois anos antes.
Depois de parcialmente concluído em 1965, o espaço serviria, durante quatro anos, para o oferecimento de aulas a cerca de 350 alunos, divididos em suas respectivas séries pelo palco e pelo salão, a despeito do ligeiro declive. A grande expectativa das crianças, no entanto, era pelos fins de semana, quando o local se transformava em área de lazer e onde vários artistas do bairro se apresentavam, com destaque para o Palhaço Pituca. "Em 1969, por meio do ex-aluno salesiano e amigo de padre Ernesto, Armando Anache, a empresa cinematográfica Farjalla Anache propôs terminar o Cine-Teatro e, como compensação, usá-lo por cinco anos – o que se cumpriu ao pé da letra, com excelentes resultados", diz José Ferreira.
Em 1964, a escola crescia largamente com a nova sede em pleno uso, o ‘barraco' de dona Catarina como ponto de apoio – que já havia sido comprado – e a integração de outras casas no bairro Cidade Jardim. Contribuía para isto o fato de que a diretoria não se recusava a efetuar matrículas e a atender as crianças carentes que batiam à porta. "Ao redor da instituição-núcleo, padre Ernesto foi criando entidades encarregadas de dar-lhe apoio. E foi então que a instituição mais abrangente passou a ser conhecida no Brasil e no exterior como Cidade Dom Bosco, governada por meninos, sob a supervisão dele", conta José Ferreira.
Mas porque Cidade Dom Bosco? Renato Báez explica que, logo no início da obra, o advogado, jornalista, escritor, político, pecuarista e benfeitor da obra Gabriel Vandoni de Barros sugeriu ao padre Ernesto o nome de "Escola Profissional" por definir melhor a finalidade da instituição e canalizar verbas e auxílios mais facilmente. Este foi o nome extra-oficial que predominou, embora o decreto do deputado estadual Fauze Gattass já tivera, ainda em 1957, resultado na criação da Escola Rural Mista Alexandre de Castro.
"Como a ideia da obra ia muito além da estrutura formal de uma escola, padre Ernesto foi dando-lhe diversas denominações, tais como ‘Lar da Criança Pobre', ‘Cidade da Criança Pobre' e ‘Grupo Escolar Alexandre de Castro'. O nome que depois prevaleceu foi o de ‘cidade', por abranger todas as atividades educativas e promocionais e por aproximar-se mais do modelo comunitário americano, tão divulgado no mundo: ‘A cidade dos Meninos' (Boy's Town), fundada pelo padre Flanaghian", relata o professor.
O crescimento da Cidade dom Bosco prosseguia a tal ritmo que, já em 1967, contava com mais de 600 alunos matriculados, sendo que pelo menos 350 deles já cursavam a 4ª série do ensino fundamental. "Por conta do meu pedido como deputado estadual ao Governo do Estado, foi criado o curso ginasial, por meio do decreto nº. 718, de 1968, iniciando naquele mesmo ano e trazendo de volta inúmeros alunos que já haviam terminado o curso fundamental", acrescenta José Ferreira.
Italianos aportam no Brasil para continuar a obra
Ainda em 1966, quando a instituição já abrigava várias centenas de alunos e ganhava cada vez mais relevância na sociedade corumbaense, e incentivado pelo então inspetor salesiano padre Pedro Cometti, padre Ernesto cogitou a possibilidade da vinda da Operação Mato Grosso a Corumbá. Como fruto de uma de suas viagens à Itália, a organização formada de jovens universitários italianos, a serviço de entidades de promoção social, chegou à cidade em 14 de julho de 1969 com a missão de construir um pavilhão escolar inteiro, suficiente para atender o crescente número de matrículas de crianças carentes.
"Dos 60 integrantes do grupo, 20 vieram para Corumbá, dispondo-se a realizar a erguer o prédio principal da escola proposta, onde estudariam 2 mil alunos. Ao chegar, ficaram alojados no antigo ‘barraco' de dona Catarina. Eles não conheciam fronteiras, nem regateavam sacrifícios com o objetivo de elevar e enobrecer os irmãos pobres e humilhados pela privação", descreve o próprio padre Ernesto, cujo contato pessoal encontrou respaldo no padre Hugo de Censi, coordenador dos grupos.
"Lançada a pedra fundamental no dia 23, as demarcações já feitas, no dia seguinte os integrantes da entidade se entregaram ao mutirão. Enquanto os jovens, sob o sol causticante, dedicavam-se aos trabalhos pesados da construção, as moças prestavam assistência social e sanitária às crianças, nos intervalos dos trabalhos da cozinha e do tanque de lavar roupas. Quatro meses depois, regressaram à Itália, deixando dois deles para que a obra não fosse paralisada: Álfio Pozzi e Eurico Mário", relata José Ferreira.
No ano seguinte, voltaram para inaugurar, em 21 de setembro, a parte central do pavilhão e deixar as duas alas restantes, na altura para receber o segundo andar. Na terceira vinda, em 1971, o grupo composto apenas de 12 membros vem acompanhado do padre Remo Prandim e, depois de mais quatro meses, "consegue terminar a construção que ficou como um templo, simbolizando o amor e a generosidade de jovens que souberam dar uma resposta aos desafios sociais que se apresentavam", como completa Renato Báez.
Neste ponto, com dois pavilhões prontos, teatro e centro de saúde, poder-se-ia dizer que um longo caminho já havia sido trilhado, muito além da expectativa e ainda mais do ceticismo de tantos. Sobre isso, ele assim se manifesta: "A aceitação do povo, o sacrifício dos educadores e mestres e a ajuda constante de benfeitores próximos ou no exterior – todos esses componentes, aureolados pela benção de Deus, fizeram crescer e tornar frondosa a árvore. Esses fatores transformaram o barraco em majestosos edifícios, em Cidade Dom Bosco".
(Texto publicado na Revista Cidade Dom Bosco – 50 Anos, lançada no dia 18 de outubro de 2010)