Quebra-torto com Letras discute literatura regional e poesia como crítica social

Um poeta e ativista da periferia paulista, um sociólogo boliviano do altiplano, um poeta campo-grandense, um ambientalista defensor da Amazônia e uma poeta e ilustradora corumbaense. Nesta salada cultural para todos os gostos, no segundo dia do Quebra-torto com Letras do Festival América do Sul, no sábado, 26, no Instituto Moinho Cultural, quem ganhou foi o público, que teve acesso a debates diversificados e com forte carga de crítica social.

 

O poeta e escritor Sérgio Vaz trocou Minas Gerais para morar em Capão Redondo, um dos bairros mais violentos do mundo, de acordo com relatório da ONU. Em Taboão da Serra, cidade satélite de São Paulo, ele criou a Cooperativa da Artistas da Periferia (Cooperifa) e organizou a Semana de Arte Moderna da Periferia.

 

Criou projetos usando a poesia contra a violência. Cita Carolina de Jesus, Plínio Marcos e Conceição Evaristo como referências de uma literatura de raízes. “Precisamos dessacralizar a literatura para que o escritor possa ser visto como um trabalhador comum”, afirmou. “Criamos a Cooperifa, dentro de um bar, para falar de poesia”, diz.

 

Sérgio conta que ao conhecer Racionais MC pela primeira vez ouviu uma poesia que falava do seu bairro. Até ali aprendera que a periferia só virava notícia nos programas policiais de Gil Gomes e Datena. “Criamos um projeto usando o rap para estudantes do EJA, os alunos estranharam porque achavam que rap não era poesia. Então eu toquei Racionais MC e eles se identificaram. “Se rap é poesia então nós gostamos de poesia”, disseram.

 

Para Sérgio Vaz a poesia tem o poder de libertação, porque por meio dela tudo é possível. “Descobrimos que na favela da Rocinha a comunidade também faz sarau de poesia”, contou.

 

O sociólogo e escritor boliviano Marcelo Sarzuri defende a ideia de “descolonização do corpo”, a mesma linha seguida pelo teatrólogo Ivan Nogales e outros intelectuais de seu país, preocupados em reconstruir os valores da ancestralidade – seja aimará, como a dele, ou quechua, as duas maiores etnias do país – como forma de autenticidade. Esses valores, segundo Sarzuri, foram se perdendo na medida em que as comunidades trocaram o campo pela cidade, chegando ao ponto de estudantes terem vergonha de suas mães que usavam as poleras (saias rodadas típicas bolivianas). “A colonização é uma estrutura de desprezo (pelos valores de identidade) que chega à família”, destacou o sociólogo.

 

Segundo Sarzuri, natural de El Alto, descolonizar o corpo é “criar comunidades, trabalhar a autoestima, refigurar a identidade, democratizar e fazer circular os bens culturais, educar o sentimento dos jovens e usar as mesmas ferramentas do capitalismo (como as redes sociais) para atingir um público massivo, visando o bem comum”.

 

Sandálias de Frei Mariano

 

A participação da poeta e artista plástica Marlene Mourão, a Peninha, teve seu auge quando uma voluntária saiu da plateia para recitar os versos da marchinha “As Sandálias de Frei Mariano”, tema do recente livro lançado pela escritora corumbaense. No Quebra-torto com Letras, Peninha relançou a obra ilustrada “Um altar para as valorosas sandálias do Frei Mariano” e voltou a falar de sua personagem mais conhecida, Mariadadô, focalizada em um livro de charge.

 

Ganhador do Prêmio Sesc de Literatura 2017, ativista ambiental e empreendedor social, João Meirelles Filho lembrou que há 20 anos trabalha com o Instituto Peabiru, que atua no campo dos direitos sociais e ambientais. E deu detalhes sobre o livro de contos “O Abridor de Letras”, sua primeira incursão no campo da ficção depois de 35 anos como escritor.

 

Poeta, escritor e compositor, Rubenio Marcelo respondeu sobre seus trabalhos, doze livros publicados e três CDs. “Vias do infinito ser”, com 113 poemas, lançado há um ano, foi o décimo primeiro livro dele. Na semana passada, ele lançou em Campo Grande a obra “Palavras em plenitude – prosa e crítica cultural”, pela editora Life e apoio do FMIC, com texto em prosa, resenhas, crônicas e ensaios com enfoque na crítica cultural.

 

Literatura regional

 

O Quebra-torto com Letras reuniu um time de escritores e poetas de primeira grandeza em um grande momento para a literatura, na manhã da sexta-feira, na sede do Instituto Moinho Cultural Sul-Americano, no segundo dia do Festival América do Sul Pantanal. E dessa vez com um enfoque mais intenso na literatura regional.

 

Poeta corumbaense com participação em 50 coletâneas no Brasil e no exterior, ativista cultural, Benedito C.G.Lima abriu o evento recitando um de seus poemas preferidos, “Quem disse que sou poeta?”. No primeiro verso, ele diz: “Quem disse que sou poeta/Deve ser que se enganou!/Poeta, é aquele que ouve as estrelas;/Que conversa com as pedras;/Que esgarça as frases nas asas da garça;/Que Urucumeia o céu do Pantanal/Na escrita crepuscular do poente!”

 

Trata-se de um poema com forte influência de Manoel de Barros, como se observa no estilo e na temática de outros poetas regionais. Fundador da Academia Corumbaense de Letras e a Academia de Literatura e Estudos de Corumbá (ALEC), Benedito resumiu a sua trajetória, desde os tempos como aluno da Escola Estadual Maria Leite, depois como professor de História, compositor nos Festivais da Canção de Corumbá e agora como coordenador de coletâneas de poetas corumbaenses – a mais recente delas, “Florilégio da Esperança”.

 

É comum Benedito reencontrar antigos alunos, agora já formados, que o param para agradecer os conselhos e ensinamentos. E no Quebra-torto com Letras não foi diferente: Ana Lúcia de Oliveira Francellino Galvão, de 30 anos, sua ex-aluna na Escola Rotary Club, levou um abraço ao mestre. “Se hoje sou professora de História devo muito a ele, que me inspirou”, contou Ana Maria.

 

Jornalista, produtora cultural e mestre em Estudos Fronteiriços pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Lívia Gaetner estreou na mesa de debates como escritora e poeta. E apresentou um de seus poemas, inspirado em uma de seus passeios pelo Jardim Independência, área verde moldurada pelo coreto e antigas estatuetas, no coração de Corumbá.

 

Diz o poema: “O velho coreto alemão sonda minha solidão/Encurvada num banco de concreto,/Na manhã da praça quando tudo por ela passa,/Traçando um rastro no meu reduzido horizonte que, outrora foi amplidão:/Senhoras pardas com enormes bolsas,/Jovens e seus apressados sonhos./Ouço vendedor de picolé anunciando novos sabores,/Homem nervoso ao falar no celular;/Doidos perdidos em tiques e solilóquios;/O antigo balanço rangendo no parque;/E lá vem curioso o cão a passear encoleirado;/Crianças uniformizadas rumo à escola;/Rodas de bicicleta em sincronia;/Garis e vassouras recolhendo o que sobrou da madrugada,/Talvez o papel de bala fosse de beijo de namorados;/Eis que vem chegando um senhor, dois, três, …/Para formar a mesa de dominó/E eu seguindo ali/Como estátua de herói da Guerra do Paraguai/Observando, apenas observando…

 

O escritor corumbaense Henrique de Medeiros, publicitário e jornalista, presidente da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, revisitou suas principais obras “O Azul Invisível do Mês que Vem”, “Pirâmide de Palavras” e “Que as Dores se Transformem em Cores”.

 

A Bruxa da Sapolândia

 

Outro destaque foi o escritor campo-grandense André Alvez, diretor regional da União Brasileira de Escritores, que leu alguns trechos do romance recém-lançado pela Editora Chiado, “A Bruxa da Sapolândia”, baseado em fatos reais. “Nos anos 60, havia no antigo bairro da Sapolândia, em Campo Grande, uma mulher conhecida como bruxa que fazia trabalhos malignos, que matava crianças, que acabou sendo presa durante dois anos e foi inocentada”, contou Alvez. “Me baseei no processo contra ela para fazer a pesquisa”.

 

André Alvez contou que busca inspiração em três grandes autores que escrevem dentro do estilo do “realismo fantástico” que tanto aprecia: Gabriel Garcia Marquez nos romances, Júlio Cortázar nos contos e Rubem Braga nas crônicas.

 

O poeta e jornalista paraguaio Mário Rubén Alvarez relatou que costuma escrever seus livros em guarani e espanhol, buscando diversificar a linguagem e atingir um público maior. Como pesquisador de arte popular publicou a coletânea “Las Voces de La Memoria” e o livro “Folklore Paraguayo”.

 

A mediação do Quebra-torto com Letras foi de Edson Silva, doutor em Comunicação e Jornalismo pela Universidade Autônoma de Barcelona, Espanha, e professor no curso de jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, e da doutora em sociolinguística e colunista Rosângela Villa, autora e organizadora de livros e da coluna semanal Coisas da Língua no jornal Diário Corumbaense.

 

Na plateia, muitos estudantes, que no final puderam saborear o quebra-torto, prático típico da comitiva pantaneira – arroz de carreteiro, feijão gordo, paçoca, mandioca – produzido pela equipe culinária do Moinho Cultural. As informações são da Assessoria de Comunicação FASP.

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