Em uma sala de 30 m², com carteiras emprestadas
Luiz Carlos da Mata, Darci Ferreira da Costa, Jayme Pereira da Mata, Carlindo Antunes da Mata, Lucinda Ferreira da Costa, Irenice da Guia Hibraim, Anadir Gomes Monteiro, Neiva Gomes Monteiro. Mais do que oito nomes, oito pequenas histórias de vida cuja trajetória se cruzaria, na manhã de 3 de abril de 1961, com a de homens determinados a construir um novo caminho por onde milhares de crianças e jovens pobres pudessem seguir em busca de perspectivas. Oito meninos e meninas entre oito e 15 anos que, naquela manhã, tornaram-se os primeiros matriculados na nascente Escola Profissional Alexandre de Castro.
Se o cenário em nada lembrava o ambiente típico a uma escola, o local era a representação viva da necessidade de uma. Saltava aos olhos a pobreza predominante do bairro Cidade Jardim, o mais próximo da fronteira com a Bolívia e então fora do perímetro urbano de Corumbá, com cerca 500 casas de tabua, lata ou barro. O rótulo de mais perigoso bairro era conhecido por toda a cidade, bem como o vasto número de suas crianças preenchendo todos os cantos das ruas entre o barro e a poeira que, na falta de escolas, igrejas ou qualquer outra ocupação, iam crescendo no caminho da "vadiagem e malandragem". E era nele que se localizava a casa de Catarina Anastácio e João Pedro Cruz.
"Na presença de autoridades locais e do Secretário de Educação do Estado, Edimir Moreira Rodrigues, foi naquela humilde comunidade que a semente brotou. A primeira professora, Norma Tereza Gomes, e a primeira servente, Leonarda Cruz – filha do casal que cedia a casa – tiveram o mérito ímpar de regar a plantinha que germinava, ainda tenra, mas muito promissora, como fruto do trabalho da Comissão Pró-construção da Escola Alexandre de Castro, sob a regência do maestro Ernesto Sassida", relata o escritor José Ferreira de Freitas, em Se outros fossem iguais a você…
Embora tão humilde quanto os demais, a casa onde dona Catarina morava com o esposo e seis filhos, na Rua Marechal Deodoro, era uma das maiores do bairro, com três cômodos e um estreito corredor lateral, sustentados por um esteio de aroeira e um travessão horizontal. Para ceder espaço aos alunos, ela precisou recuar os moveis e liberar a peça da frente, com cerca de 30 metros quadrados, onde instalou o material escolar: um quadro-negro médio, pregado na parede divisória; uma cadeira; uma pequena e velha mesa emprestada e 22 carteiras escolares usadas, de tamanhos diferentes.
"Dona Catarina não tinha qualquer conhecimento de letras, era completamente analfabeta, mas tinha uma visão muito ampla, uma formação muito grande e educava muito bem os seus filhos, sentindo a necessidade de uma escola, chegando a abrir da própria casa, da privacidade do lar para supri-la. E deu tão certo que, com menos de um mês de funcionamento, já eram 70 alunos e várias divididos em três turnos, aprendendo ABC, contas, história e geografia. E as professoras, que logo se tornaram várias, eram pagos pela própria comissão", conta José Ferreira.
A realidade bate cedo à porta dos entusiasmados
Passada a euforia dos primeiros dias da nova instituição de ensino, mas não a alegria dos que com ela estavam envolvidos, as dificuldades e problemas logo afloraram. A distância em relação ao centro da cidade tornava o acesso um exercício de muita paciência para professoras e serventes, que careciam de transporte diário. Em dias de chuva, a situação agravava-se drasticamente, demandando a colocação de tábuas no trecho enlameado da rua em frente. Recursos ainda não havia para a compra de materiais didáticos, e livros e cadernos deviam ser recebidos como doação.
"Com muito sacrifício, a comissão providenciou um uniforme muito simples para os 20 alunos menores. Para cobrir as principais despesas, padre Ernesto alugava filmes de 16 mm e os exibia onde podia pelos diversos bairros, no interior de casas ou a céu abeto, quando encontrava público suficiente e a possibilidade de fazer funcionar o aparelho", relata o professor Renato Báez, em O Profeta do Pantanal, segundo quem o ‘barraco' era também ponto de chegada de muita gente pobre do bairro em busca de auxilio, transformando a escola em referência comunitária onde se misturavam alunos, pais e a própria família de dona Catarina, ainda moradora do local.
"Os 70 alunos matriculados já no primeiro mês se acotovelavam, literalmente exprimidos na pequena sala, alguns se sentando mesmo a céu aberto, à frente da casa e no corredor lateral, pois era proibido dizer não às novas matrículas. Depois, à medida que elas se ampliaram, mais professoras foram admitidas, com os salários pagos ainda pela minguada caixa de donativos", acrescenta José Ferreira.
Embora os primeiros matriculados só se sentariam nas carteiras da Escola Alexandre de Castro em abril de 1961, a busca por um local onde construir a sede definitiva da instituição começara ainda ano anterior, conforme revela Renato Báez. "Uma comissão se reuniu e percorreu os bairros Cidade Jardim e Generoso, procurando um lugar ideal. A comissão era composta do então presidente da União dos Ex-Alunos, Dr. Ubirajara de Castro; bispo diocesano Ladislau Paz; diretor do Colégio de Santa Tereza, padre Miguel Alagna; capitão Aloísio Madeira Évora; professor José Ferreira de Freitas; e do próprio Padre Ernesto Sassida", diz.
Ainda conforme o autor, após avaliar os terrenos doados pelo comerciante Cid Wanderley, no bairro Generoso, que se mostraram inviáveis devido ao difícil acessível, a comissão escolheu lotes localizados na atual Rua Dom Aquino Corrêa, mesmo com diversos barracos e pequenas construções. Eles receberiam, em 5 de novembro daquele mesmo ano, a pedra fundamental da primeira construção do que viria a ser o complexo da Cidade Dom Bosco.
Paralelamente, as entidades e pessoas envolvidas com a concretização da escola, sob a condução do padre Ernesto, promoviam campanhas de toda natureza tanto para a manutenção da instituição em atividade, quanto para a construção de sua sede própria, sendo possível adquirir os terrenos e coletar o material. "Para evitar que as pessoas nos olhassem com desconfiança, não pedíamos dinheiro, e sim terrenos e material de construção reutilizável. Então começamos a receber doações, até mesmo de carroceiros que faziam o transporte do material, que era amontoado em um dos terrenos recebidos", lembra José Ferreira.
Foram dois anos de penúria e intenso trabalho em diversas frentes para manter e sustentar o crescimento vertiginoso da escola até que, em 1963, o Governo de Mato Grosso reconhece a dimensão da obra e autoriza a Secretaria de Educação e Cultura do Estado a celebrar um convênio com a instituição. "Como deputado estadual empossado naquele ano, mostrei a importância da obra ao Governo, tornando possível a assinatura do convênio, pelo qual o Estado assumiu alguns encargos, como a remuneração das professoras", relembra o escritor.
Professor Alexandre Aurélio de Castro
Mas afinal, quem fora o personagem que entrou para a história ao nomear a primeira árvore do futuro pomar Cidade Dom Bosco? O próprio padre Ernesto explica: "Escolhemos o nome do professor Alexandre Aurélio de Castro, que tanto fez em favor de jovens corumbaenses, dedicado que foi ao ensino e formação de nossa mocidade, num desprendimento e amor dignos de imitação".
Da primeira geração dos alunos do Colégio Santa Tereza, de 1899, fora ele quem propôs, na elaboração do estatuto da União dos Ex-alunos de Dom Bosco, em 1950, a inclusão do item que previa a criação de uma escola para crianças pobres em Corumbá. A proposta resultou no item que dizia: "A União, através do seu Departamento de Assistência Social, criará uma escola para crianças pobres, proporcionando às mesmas instrução, educação e assistência necessárias para sua integração sócio-econômica e moral na comunidade".
(Texto publicado na Revista Cidade Dom Bosco – 50 Anos, lançada no dia 18 de outubro de 2010)