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Festa com o mesmo apelo popular das manifestações nordestinas, o Arraial do Banho de São João é uma tradição única de Corumbá, em Mato Grosso do Sul, e de algumas cidades do estado vizinho, Mato Grosso, por influência portuguesa. Mistura ameríndia – daí a presença do cururu nas cerimônias de içamento do mastro e das rezas nas casas -, sacro-profana – da ladainha cantada pausadamente ao ritmo carnavalesco – e o sincretismo religioso, que marcou o período de escravidão no Brasil.
A Capital do Pantanal, Corumbá, todos os anos se prepara para quatro dias de festa. O ritual de homenagem a São João começa no entardecer do dia de Santo Antônio, 13 de junho. As famílias devotas preparam uma cerimônia, na qual uma imagem é colocada em um altar enfeitado de flores, armado em cima de um andor. Enquanto isso, uma rezadeira puxa as rezas ao santo, seguida pelos cururueiros, grupos musicais tradicionais da região, que utilizam a viola-de-cocho como principal instrumento, além do ganzá e do adufo.
O ponto alto é a descida dos andores até o rio Paraguai para o banho da imagem, que começa na noite do dia 23 e termina na madrugada do 24, atraindo milhares de pessoas ao Porto Geral. Depois de sofrer descaracterizações e afastamento do povo, o banho retorna às suas origens, que são as novenas e o envolvimento dos festeiros na preparação dos andores.
O ritmo carnavalesco que sucede a ladainha, na descida da imagem de São João à beira do rio Paraguai, não foi muito bem compreendido por um pároco, há algumas décadas, que chegou a proibir tal manifestação evocando os princípios da Igreja. Mas, prevaleceria o desejo popular de festejar – com todo respeito e devoção – a seu modo o São João Pantaneiro. Tradição que vem da época da colonização da disputada fronteira.
A louvação ao santo tem dois momentos marcantes, durante a procissão pelas ruas da cidade. Ouve-se, primeiro a ladainha: “Deus te salve João/Batista sagrado/O teu nascimento/Nos tem alegrado”. Logo, a banda imprime um ritmo carnavalesco e o povo pula de alegria, cantando: “Se São João soubesse que hoje era o seu dia/ Descia do céu à terra/Com prazer e alegria”. O tradicional hino foi recolhido pelo professor Valmir Corrêa.
São João Batista era filho de Zacarias e Isabel, e primo de Jesus Cristo. O Evangelho de São Mateus fala das pregações e dos batismos que João realizava às margens do rio Jordão, entre os quais está o batismo do próprio Cristo.
Considerado o último dos profetas e o primeiro apóstolo, São João Batista foi decapitado por capricho de Salomé, casada com Herodes. O santo é homenageado pelos católicos no dia 24 de junho.
Água benta
Assim como se acredita que a água do rio Jordão adquiriu poder curativo em contato com o corpo de São João Batista, o corumbaense tem a mesma crença em relação ao caudaloso rio Paraguai. A pesquisadora do folclore local, Eurice Ajala Rocha, relata que esse sentimento de religiosidade e misticismo está atrelado ao próprio ambiente, onde o principal rio da região representa o elemento-base da vida material para o homem do Pantanal.
“O pantaneiro acumulou conhecimento pela própria experiência e vivência em função do rio, um bem inestimável que fecunda a terra com suas enchentes periódicas, fonte de alimentação e o caminho natural entre as fazendas e zona ribeirinha”, explica ela. “Ele faz dessa faina não só o seu meio de manutenção, mas o grande significado da própria existência, assim como a água tinha destaque na colheita de grãos nas festas pagãs, na Europa”.
As crendices e superstições que dominam os festejos na mágica noite do dia 23 são arraigadas em Corumbá, onde São João também assume papel de casamenteiro. Depois do banho sagrado, um dos momentos mais significativos é o içamento do mastro com o sapateado dos cururureiros, que entoam cânticos indígenas. Aqui, afloram todas as manifestações, mesclando alegrias e esperanças, a satisfação no cumprimento da “obrigação”.
Casamenteiro
Durante o banho, o povo entra na água, toca a imagem, se percebe a religiosidade dominante. Aos gritos de “Viva São João”, escuta-se batuque da umbanda na beira do rio, anunciando a presença de entidades num grande terreiro. Os pagadores de promessas se ajoelham com emoção e fé fervorosa. O andor retorna para a casa do festeiro, subindo a ladeira, onde é tradição cumprimentar quem desce, até a madrugada do dia 24.
Entre as mais conhecidas superstições juninas, estão as relativas a casamento. Diz a lenda que mocinhas casadouras precisam passar por baixo do andor do santo durante o banho do rio, para encontrarem o futuro esposo antes do próximo festejo. “São João recebe mais pedidos que o próprio Santo Antônio”, diz Eunice Ajala. Acredita-se, também, que quem não enxergar a imagem do santo na água não estará vivo no ano seguinte.